Direito de imagem, inteligência artificial e disposição pós-morte

 

Vivemos em um mundo orientados pela pelas forças sociais, científicas, políticas, econômicas e religiosas. E, por isso, diante da abordagem de hoje, pressinto haver muito sentido no texto de Machado de Assis em ‘Memórias Póstumas de Brás Cubas’. Assim, convido lê-lo comigo para uma possível divagação.

“As botas mortificam os meus pés, elas massacram os meus pés, eu ando com as botas e os meus pés doem, mas quando eu chego em casa e tiro as botas e coloco meus pés em água quente eu sinto um prazer que não sentiria jamais se essas botas não tivessem mortificado os meus pés.”

 O texto acima me remete ao alívio que somente é possível experimentar após passar pelo massacre que os pés sofreram. Na semana passada, grande parte da população brasileira se emocionou com o vídeo da inteligência artificial que conseguiu reunir mãe e filha numa gravação inédita. No material, Elis Regina, no vigor da sua mocidade, canta ao lado de sua filha, Maria Rita, no auge de sua vida adulta. No entanto, mais de 4 décadas separam as duas em razão da morte de Elis, em 1982, quando Maria Rita tinha somente 4 anos de idade. Se foi emocionante para o público, imagina para a filha se ver ao lado de quem eternizou saudade em suas emoções e afeto? Nos anseios de uma criança e adolescente que se viu desprovida do cheiro e apoio materno? No massacre dos seus pés, o vídeo lhe causou o conforto de quando fica descalça da bota que mortificou e de certa forma eternizou as dores de Maria Rita. Daí você me questiona, o que isso tem a ver com o Direito? Tem muito. Por certo, atualmente o direito de uso da imagem pelos herdeiros já foi superado, uma vez que filmes, livros, shows, há tempos são reproduzidos com a presença de pessoas famosas que já partiram para a eternidade. Mas, sim, o que está em xeque é a disposição ou indisposição de última vontade nessa vertente. Certamente, uma pessoa que faleceu há 20, 30, 40 anos sequer imaginava a possibilidade da sua permanência em imagem e conduta, correto? A nossa Constituição Federal prima pela imagem como direito fundamental da pessoa humana, é o que aduz nos incisos V e X do art. 5°. A imagem de uma pessoa são atributos reconhecidos socialmente como sua personalidade moral e representação social.

Assim, com a tecnologia avançada, é necessário que ela tenha a cautela de manter a imagem da pessoa, àquela imagem em que foi construída no transcorrer da sua vida para que ela não fira a proteção constitucional da pessoa ali reproduzida. Sim, os pés de Maria Rita foram, de certa forma, amortecidos com a morte da sua mãe, mas sem dúvida aliviados com a alegre reprodução que manteve preservada a realidade materna de 40 anos atrás, bem como o sorriso fascinante de quem canta para a própria filha, encantando o mundo de diversas gerações.

 

Por Flavia Moreira. Advogada, pós-graduada em Direito Público, Direito Processual Civil, pelo IDDE em parceria com Universidade Coimbra de Portugal, ‘IUS GENTIUM CONIMBRIGAE, especialista em Direito de Família e Sucessões, associada ao IBDFAM e membro do Direito de Família da OAB/MG.

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