CREPÚSCULO DA LEI – ANO VI – CCXCIX
“Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.”
-Brás Cubas
Em memórias post-mortem, Brás Cubas (Machado de Assis, 1881) relata sua infância imersa no período escravista de (sua) família, tradicional possuidora de escravos.
Conta o narrador que, aos seis anos, já havia “quebrado a cabeça de uma escrava” por mera pirraça. Também relata que, como “senhorzinho”, fazia do moleque escravo Prudêncio seu “cavalinho particular”, apondo-lhe cordas feito arreio, montando-lhe e dando-lhe golpes de chicotes, sem se importar com as dores e reclames do moleque escravo.
Ainda segundo a narrativa, anos mais tarde o pai de Brás Cubas concedeu alforria ao escravo Prudêncio. Assim, na condição de liberto, o ex-escravo Prudêncio tratou logo de juntar dinheiro e, na primeira oportunidade, cuidou bem de “comprar um escravo” para si.
A narrativa prossegue. Eis que Brás Cubas, também adulto, passando por praça pública, se depara com um ajuntamento de pessoas assistindo a um escravo sendo castigado pelo seu senhor. Eram tantas e tamanha a violência que o negro escravo gritava e pedia perdão.
Quando Brás Cubas se aproximou, reconheceu, perplexo, que se tratava de Prudêncio, agora podendo exercer sua contida raiva contra o (seu) infeliz escravo, e impondo a ele “devida” punição por desobediência.
(…)
A obra machadiana é, de fato, moralmente cirúrgica.
A narrativa envolvendo o negro Prudêncio – desde “cavalinho” do filho do patrão até tornar-se um violento dono de escravo – reflete uma consequência epistemológica de comportamentos da alguns da classe baixa.
Essa episteme pode ser constatada em proposições explicativas do voto popular favorável a discursos políticos claramente de cunho violento contra a mesma classe popular que neles votam.
É desta forma que muitos oprimidos se satisfazem, ao menos, externando a possibilidade de castigar alguém em praça pública por procuração, ou seja, votando em candidatos capazes de repassar sofrimento e o castigo contra outro, em nome do oprimido.
É assim que alguns oprimidos recalcados sentem e soltam o gozo contido, vendo um outro oprimido sofrer.
Esse (também) é o arsenal teórico de Wilheim Reich (1932) no livro “A psicologia de massas do fascismo”.
Muitos candidatos e políticos que se apresentam – eis que já foram “cavalinho” do patrão – agora bem treinados para, com êxito, discursarem em praça pública e explorarem a sede de vingança recalcada de alguns da classe oprimida.
A questão é que tais candidatos continuarão sendo “cavalinhos do patrão”. Apenas com a diferença da troca do chicote por baias confortáveis e capim fresco todos os dias.
Felizmente (estes) são a minoria e são devidamente substituídos, tão logo a maioria racional os identifica.