As portas do inferno

José Horta Manzano

Referia-se ao decreto de aprovação das ‘bets’. (Essa é outra que mudou de nome; chamava-se aposta. ‘Bet’, sem dúvida, tem o charme de Las Vegas, enquanto ‘aposta’ lembra o ponto de bicho da esquina.)

Como muita gente, a doutora se horrorizou ao saber da extensão do estrago provocado pela jogatina: uma desgraça nacional, capaz de levar brasileiros ao superendividamento e à inadimplência. De olho no aumento da arrecadação, o legislador não havia previsto que a profusão de sites de aposta provocaria um atropelo comparável à corrida do ouro da Califórnia, que se deu em meados do século 19.

Cá no meu canto, pensei no dilema da liberação das drogas hoje ilícitas. Os que são favoráveis argumentam que, apesar da proibição, qualquer cidadão disposto a comprar maconha vai encontrar o entorpecente a dois passos de casa. Se quiser, pode até pedir entrega. (Taí mais um que mudou; a arcaica ‘entrega’ virou ‘delivery’, palavra que vem com o charme de uma pizza americana. Com direito a ketchup.)

Não tenho ideia formada sobre o assunto. Durante um tempo, cheguei a concordar com a ideia de que, proibidas ou não, as drogas já estão disponíveis há muito tempo. Diante do auê provocado pelo escândalo das ‘bets’, comecei a refletir. Talvez o problema seja mais complicado do que parece.

Drogas estão disponíveis, sim, mas ainda se situam do outro lado da cortina que separa o lícito do ilícito. O cidadão comum percebe que, se certas substâncias estão do outro lado da cortina, por algo será – como dizem os espanhóis – por alguma razão há de ser. Para obter o produto, há que descerrar a cortina e pôr-se do lado interdito. Nem todos ousam.

No entanto, no dia em que venda e consumo de entorpecentes forem liberados, o quadro se transforma. A cortina que separa o lado firme do lado charcoso estará definitivamente recolhida. É permitido prever que, assim como aconteceu com as ‘bets’, as ‘drugs’ provoquem nova corrida ao ouro e acabem transformando o país num imenso parque de drogados.

São conjecturas, é verdade, mas o risco existe. Suas Excelências deverão ser extremamente cuidadosas quando chegar o dia de votar contra ou a favor de um afrouxamento da política nacional de entorpecentes. O assunto pode ter consequências dramáticas e irreversíveis.

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JOSÉ HORTA MANZANO – Escritor, analista e cronista. Mantém o blog Brasil de Longe. Analisa as coisas de nosso país em diversos ângulos,  dependendo da inspiração do momento. Colabora no caderno Opinião, do Correio Braziliense. Vive na Suíça, e há 45 anos mora no continente europeu. A comparação entre os fatos de lá e os daqui é uma de suas especialidades.

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